Quando um diretor consolida sua carreira com filmes tão únicos e autênticos, ele imediatamente se torna uma figura aguardada pelo público a cada novo lançamento. Após dominar as bilheterias com o efervescente Rivais, Luca Guadagnino retorna às telas com uma proposta ainda mais emblemática e ousada: Queer, seu mais recente longa, que estreia nos cinemas no dia 12 de dezembro.
Tivemos a oportunidade de assistir ao filme em primeira mão e... temos muito o que discutir!
Do que se trata Queer?
Baseado na semi-biografia de William Burroughs, em Queer segue o alter ego do autor, William Lee (vivido pelo magnífico Daniel Craig), em uma México dos anos 50. Vagando de bar em bar, Lee é um homem inseguro consumido por uma busca incessante por um propósito, e, acima de tudo, por um parceiro mais jovem que possa preencher o vazio que carrega.
Um dia desses, os olhos dele se encontram com o de Eugene (Drew Starkey), um jovem intrigante que frequenta o mesmo bar todas as noites, sempre acompanhado de uma mulher. Lee faz de tudo para chamar atenção do jovem, até que consegue, e engata uma espécie de relacionamento tão intenso quanto conturbado. Eugene, por sua vez, parece ceder aos avanços de Lee apenas para alimentar sua obsessão.
Mas sua dependência química e a inquietação emocional levam Lee a partir para a América do Sul em busca de uma misteriosa erva medicinal capaz de conceder habilidades telepáticas. Mas, no fundo, sua verdadeira busca é por respostas, e pelo amor que sempre lhe escapou.
A visão de Guadagnino
Luca Guadagnino é um diretor com visão única, e aqui não é diferente. O filme tem uma cinematografia de ponta, seja no começo mais tranquilo até o ápice criativo final. O que difere talvez esse longa dos seus trabalhos anteriores é o tema central, já lido no título, e a fidelidade à essência da obra de William S. Burroughs. Junto ao roteirista Justin Kuritzkes, eles encontraram um ponto de convergência entre o texto original e as licenças poéticas que Luca desejava imprimir, fazendo de Queer um exemplo fenomenal de um bom roteiro adaptado.
Nos aspectos visuais, o diretor de Rivais ultrapassa ainda mais os limites ao retratar as cenas íntimas da história. Sua câmera captura os corpos de uma maneira única com cenas de sexo que são francas e explicitas. Ele vai até os limites do permitido, mantendo o espectador ao seu lado enquanto está despindo seus personagens (e não apenas de suas roupas). Um toque especialmente marcante no filme é o efeito fantasmagórico da mão de Lee percorrendo o rosto do outro garoto enquanto, na verdade, ela está parada, como se seu espírito estivesse desesperado por alguma forma de afeto, tamanho o seu desejo de ser amado.
Ele brinca também com uma paleta de cores monocromáticas em algumas cenas, trazendo uma tensão que não te deixa relaxar em momento algum, enquanto a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross adiciona mais camadas, misturando melodias viscerais e ambientes sonoros que amplificam a atmosfera inquietante do filme. Se fosse para apontar um ponto negativo, algumas cenas com muito CGI desnecessário saltam na tela de maneira desconcertante, e que honestamente, não colaboram para a harmonia do filme.
Performances que despem a alma
Daniel Craig entrega uma atuação sofisticada ao interpretar um William Lee com tanta carga dramática. Ele transforma o protagonista em alguém fragmentado, cambaleando entre roupas sujas e com uma fome desenfreada por uma imagem de validação. Craig explora não apenas o charme do personagem, mas também sua tristeza profunda, o tormento do vício e o desejo avassalador de ser amado. É um trabalho intenso, que em sua atuação, Daniel Craig tem a coragem de fazer parecer fácil, como um dom natural.
Drew Starkey, como Eugene, oferece uma performance magnética e enigmática. O jovem é ao mesmo tempo silencioso e cheio de presença, transitando entre a liberdade pessoal e uma ambiguidade que desafia o público. Drew consegue trazer à tona uma dualidade essencial: será que Eugene está mesmo apaixonado ou apenas se aproveitando da vulnerabilidade de Lee?
Quando a arte deixa marcas
Sair do cinema desconcertado não é algo que acontece sempre. Mas Queer, de Luca Guadagnino, conseguiu esse feito comigo. Esse não é apenas um filme que aborda a homossexualidade ou conta uma história de amor, é uma obra que questiona se estamos realmente prontos para uma conexão genuína. E faz isso de uma forma brutal, despindo os personagens além da superfície, revelando suas almas em toda a sua complexidade e crueza.
Queer é, sem dúvidas, o filme mais abstrato e artisticamente ousado de Guadagnino até agora. Ele é imprevisível e denso. Cada cena carrega uma quantidade absurda de informações, emoções e simbolismos que se desdobram pelas tangentes da narrativa linear. É um mergulho sem medo na psique de William Lee, uma pessoa que se tornou vítima de sua própria dependência emocional, ao ponto de se perder entre os próprios desejos e tormentos.
A experiência de assistir a esse filme é anestesiante. Há tanta coisa acontecendo que parece impossível organizar os pensamentos ao sair da sala. Confesso que escrevi boa parte destas notas no caminho de volta para casa, tentando capturar as sensações e reflexões que surgiam como flashes. Porque, honestamente, não existem palavras ou ordens lógicas suficientes para preparar qualquer espectador para o que está na tela. Especialmente se você for uma pessoa queer, não espere respostas óbvias, mas esteja preparado para levar este filme com você por muito tempo.
Dividido em três capítulos, Queer flerta com uma estrutura narrativa que lembra Tipos de Gentileza, de Yorgos Lanthimos. No entanto, aqui é uma proposta mais linear, com um início, meio, fim e um toque de ambiguidade. E isso exige paciência. O filme é longo, e cada capítulo entrega apenas um pouco mais da história, sem pressa alguma. Esse ritmo vai dividir opiniões: uns vão se engajar no começo, mas se cansar no meio e soltar a mão do diretor; outros podem, inclusive, desistir e sair da sala. Mas há aqueles (como eu) que ficarão até o último crédito, absorvendo cada frame dessa loucura visual e narrativa.
Já prevejo críticas que acusarão o filme de ser pretensioso ou até mesmo chato. E talvez ele seja, dependendo de como você o encara. Ainda assim, há algo irresistivelmente magnético em Queer. Guadagnino não parece estar preocupado em entregar respostas ou um final que faça sentido. O que ele oferece é um olhar visceral e inesperado sobre a vivência de um homem gay de meia-idade, que anseia por amor e busca no mundo respostas para suas questões mais íntimas e perturbadoras.
Esse filme é como um convite, mas não daqueles que vêm com manual ou promessas de conforto. É um chamado para se perder e se encontrar, para encarar a vulnerabilidade e o desejo. E, por mais desconcertante que seja, algo me diz que vale a pena aceitar.
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